Por que uma Psicologia Crítica?



Quem conhece meu trabalho sabe que sempre faço questão de colocar que minha atuação é crítica em relação às perspectivas mais conhecidas da Psicologia. Mas por que isso é tão importante? Por que enfrentar as perspectivas tradicionais da Psicologia e atuar de uma forma nova? E que diferença isso faz para o paciente?

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A Psicologia na história

A Psicologia, ao longo de sua história, sempre serviu como instrumento de controle. Adaptar pessoas a condições de trabalho subumanas, confinar mulheres e crianças a situações de submissão, impor costumes e obrigações geradores de sofrimento, controlar multidões revoltadas – tudo isso já foi feito utilizando a ciência da psique. Infelizmente esse tipo de uso da Psicologia não ficou no passado, e até hoje há na formação de psicólogos muitos elementos que ainda vão nesse sentido, às vezes mais explícitos, às vezes sutilmente escondidos por trás de um discurso mais moderno e humanizado. Vamos então retomar um pouco dessa história e também pensar sobre a situação atual da Psicologia.

Um exemplo histórico da atuação nefasta de psicólogos e psiquiatras tem sido bastante discutido nos últimos dias nas redes sociais: o confinamento de mulheres “rebeldes” em manicômios. Em muitas dessas instituições, mulheres que não se submetiam à moral dominante eram diagnosticadas com diferentes tipos de transtornos e encarceradas, ficando à mercê de “tratamentos” psicológicos e psiquiátricos que na verdade eram compostos por maus tratos, abusos e violências. Para chegar a essa situação, bastava, em alguns casos, que uma mulher se separasse do marido, ou que desobedecesse a um homem da família, ou ainda que se interessasse pelos estudos. Tudo isso já foi motivo para diagnósticos e internações. [1]

Outra categoria de diagnósticos, não tão conhecida hoje, é aquela que se aplicava aos negros escravizados que, na época da escravidão, tinham atitudes contrárias ao esperado pelos senhores. Drapetomania, por exemplo, é o nome dado ao suposto transtorno mental que fazia com que os escravos fugissem. A cura era simples: o senhor tinha que saber balancear bem entre benevolência e a punição física. Na mesma época, também se diagnosticava a Dysaesthesia aethiopica, que seria outro transtorno, causa da má vontade dos negros (escravizados ou livres) para trabalhar. [2]

É fácil observar, nesses exemplos, como a ciência da psique foi utilizada para controlar pessoas e submetê-las a instituições sociais opressoras, cujo fim sempre era o domínio de uns sobre os outros. Mas, como já colocado, esse caráter da Psicologia não ficou no passado.

A Psicologia tradicional hoje

Práticas psicológicas que hoje nos parecem grotescas foram substituídas por outras, aparentemente mais humanizadas e menos enviesadas pelos interesses de dominação. Mas muitas vezes essas mudanças são apenas uma ilusão e escondem os fundamentos de práticas que ainda hoje são hegemônicas na Psicologia.

Uma discussão atual que ilustra bem esse fato são as ideias dominantes sobre o TDAH, ou Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Os critérios para se diagnosticar, intervir e medicar uma criança que supostamente tem esse Transtorno não são qualitativamente muito diferentes daqueles apresentados anteriormente: grande parte das vezes, são critérios que se baseiam em desconformidades entre o comportamento da criança e o comportamento que os adultos ao redor esperariam dela. Crianças diagnosticadas com TDAH são aquelas que criam problemas para os professores porque não ficam quietas sentadas na cadeira, ou que perturbam os pais em casa quando eles precisam descansar ou trabalhar.

Muito parecido é o diagnóstico de Transtorno Desafiador Opositivo. É aplicado principalmente a crianças, mas também a pessoas mais velhas, e consiste simplesmente no fato de que a pessoa não obedece, opondo-se e irritando-se quando é ordenada a fazer algo que não queira. Apesar da retórica de que só tem o transtorno aquela pessoa que tem o comportamento opositivo mais frequentemente do que outras pessoas da mesma idade, o critério final para o diagnóstico é o mesmo que tratamos ao longo de todo esse texto: aquelas pessoas que não cumprem com a obediência e submissão esperadas dela pela sociedade são enquadradas no Transtorno.

O diagnóstico e a intervenção (muitas vezes medicamentosa) em crianças são importantes do ponto de vista de uma sociedade repressora: subordinando-se as crianças, é mais fácil depois subordinar também os adultos. Mas a Psicologia não limita tais intervenções às idades mais tenras, e nos tratamentos de adultos também muitas vezes cumpre um papel de adaptar a pessoa a um ambiente hostil e opressor.

Trabalho, relações familiares, relacionamentos amorosos e sexuais, raça, padrões de gênero e de sexualidade – são todas instituições que, na nossa sociedade atual, são organizadas de forma opressora, e muitas vezes geram sofrimento para as pessoas nelas envolvidas. Mas, em vez de enxergar o sofrimento causado por tais instituições, muitas vezes os profissionais de Psicologia acabam fazendo eco com seu caráter opressor, colocando como se o problema estivesse na própria pessoa que sofre. O tratamento, nesse contexto, não passa por combater o que gera sofrimento, mas por adaptar e submeter a pessoa à situação adoecedora.

É muito comum encontrar relatos de psicólogos que, acreditando que racismo não existe, colocam para pacientes negros que o problema está neles mesmos. Para tais psicólogos, o sofrimento desses pacientes é um problema individual: alguns estariam tendo uma atitude vitimista, outros estariam vendo racismo em situações “normais” do cotidiano. [3] Ou seja, quando uma pessoa se depara com problemas trazidos pelo racismo da nossa sociedade, muitas vezes a Psicologia coloca essas situações de racismo como “normais” e a pessoa é quem deve mudar para se adaptar a isso.

O mesmo acontece quando uma pessoa (muitas vezes uma mulher ou pessoa LGBT) sofre com relações abusivas dentro das próprias famílias: maridos ou pais controladores; violências psicológicas ou físicas; não aceitação por parte das outras pessoas da família, seja em função de algum comportamento tido como errado ou de alguma crença diferente dos demais; pressões para cumprir com desejos ou expectativas familiares, em detrimento dos desejos da própria pessoa. Infelizmente grande parte da Psicologia ainda hoje considera normais algumas situações abusivas e até violentas que acontecem dentro de instituições socialmente consolidadas, como a família ou o casamento. Pessoas que se encontram nessas situações, quando recorrem a profissionais, muitas vezes são encorajadas a tentar conciliações ou a mudar algo em si mesmas que permita com que se adaptem melhor àquela instituição. Não é questionado o papel gerador de sofrimento dessas instituições. Como são instituições já muito naturalizadas na nossa cultura, o papel da Psicologia de adaptar e submeter as pessoas não é algo explícito, mas se torna também naturalizado na formação dos profissionais.

 Não é possível enumerar aqui todos os âmbitos em que a Psicologia pode atuar como uma ferramenta de dominação, por isso tratamos apenas de alguns exemplos gerais. Outros que poderíamos levantar, bastante importantes na atualidade, seriam a questão da chamada “cura gay” ou da adaptação forçada de trabalhadores a situações de assédio moral, sexual ou outros fatores adoecedores no ambiente de trabalho. E a Psicologia tem cumprido um papel, tanto historicamente quanto na atualidade, para esse tipo de prática.

Uma Psicologia Crítica

Por isso chegamos à necessidade de uma nova Psicologia, uma Psicologia que negue toda essa história de compromisso com a opressão e com a dominação, e que atue num sentido radicalmente contrário a esse. Fazendo uma crítica a toda essa prática que foi descrita até aqui, alguns psicólogos começaram a formular novas ideias, novos caminhos, colocando a ciência da psique a serviço da libertação das pessoas, do combate a tudo aquilo que traz sofrimento, e não da simples adaptação.

Quando uma pessoa está em situação de sofrimento psíquico, uma Psicologia Crítica não vai atribuir a ela própria a origem de seus problemas, e nem individualizar uma questão que é mais ampla; não vai dizer que a pessoa tem uma doença quando na verdade doentes estão as relações e instituições em que ela está inserida. Se uma criança não se adapta bem ao sistema escolar simplesmente porque se comporta como uma criança, quem tem que ser “tratada” é ela própria ou a escola? Se uma pessoa sofre com racismo, devemos adaptá-la para que conviva bem com essa violência ou fortalecê-la para que consiga combater a opressão? Se uma pessoa sofre abusos na família ou no trabalho, devemos forçá-la a uma conciliação com seus agressores ou construir com ela caminhos para que saia da situação abusiva?

Uma Psicologia crítica vai procurar as origens sociais dos problemas apresentados pela pessoa e o tratamento sempre caminhará no sentido da sua libertação em relação a situações de opressão.


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Para ler mais:
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https://www.facebook.com/JoCamiloPsicologa/posts/210090329941174

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