A depressão é uma doença como qualquer outra?


Nesse mês muita gente tem falado sobre saúde mental nas redes sociais. Fala-se sobre a importância do cuidado consigo e com os outros, mas também sobre a importância de não se tratar o tema de forma leviana. Aproveitando as discussões que têm sido feitas, achei importante tratar de uma questão que já vi aparecer muitas vezes, mas que poucas vezes é tratada com a profundidade necessária: seria a depressão uma doença como qualquer outra?

Muitas pessoas têm compartilhado textos e imagens defendendo que a depressão deve ser entendida e tratada como uma doença comum, como qualquer outra. Essa defesa tem, à primeira vista, um objetivo importante, que é combater aquele discurso que coloca que a depressão seria frescura e que não seria algo digno de atenção. De fato, o que esse tipo de discurso faz é tirar a credibilidade das pessoas que estão passando por questões de saúde mental, deslegitimar seus sentimentos e seu sofrimento e, assim, fazer agravar ainda mais o problema. Em nossa sociedade, reina um ideal de produtivismo, no qual uma pessoa tem valor apenas na medida em que puder trabalhar e ter sua mão de obra explorada. É muito comum, nesse contexto, que se valorize a saúde física porque esta faria o trabalhador estar apto a produzir, enquanto a saúde mental, desse ponto de vista, não teria tanta importância, pois não inviabilizaria o trabalho.
Devemos, sem dúvidas, combater qualquer ponto de vista que coloque que questões psicológicas não são tão relevantes. Mas a saída não deve ser tratar essas questões da mesma forma como doenças ou traumas físicos. Veremos a seguir como a ideia de tratar a depressão como outra doença qualquer na verdade é uma atualização do ideal produtivista e também serve para ajudar na exploração da mão de obra de trabalhadoras e trabalhadores, ignorando suas condições de vida e as causas de seu sofrimento.

Para começar nossa discussão, vamos imaginar outra situação, que depois nos ajudará a compreender melhor a questão da saúde mental: imaginemos uma pessoa que tem sempre dores de cabeça. Provavelmente suas dores não surgiram do nada. Um profissional de saúde qualificado, ao se deparar com esse caso, vai investigar diversas possibilidades de doenças que poderiam desencadear, como sintoma, aquele tipo de dor. Ao examinar mais profundamente e detalhadamente o caso, eliminando algumas hipóteses de diagnóstico e consolidando outras, o profissional pode chegar à conclusão, por exemplo, de que aquela pessoa sofre de uma sinusite. Ele vai, então, propor um tratamento adequado à causa dos sintomas, ou seja, um tratamento que vá combater a sinusite, e não apenas a dor de cabeça em si.
Agora pensemos o que poderia acontecer a essa pessoa se suas dores de cabeça fossem simplesmente tratadas como uma doença em si, sem que fossem investigadas de forma correta as suas causas. Poderia ser dado um “tratamento” para essa “doença”: um analgésico. Esse remédio faria passar a dor de cabeça e portanto estaria aliviado o incômodo sentido pelo paciente, que o fez procurar tratamento. Conclusão: paciente curado! Mas será?
Tratando o sintoma como se fosse uma doença em si, sem ir a fundo no exame de suas causas, a sinusite ficaria intacta e, após um tempo de tratamento apenas com o analgésico, poderia se agravar e trazer consequências muito mais severas para a vida daquela pessoa do que uma simples dor de cabeça. E esse agravamento viria de forma silenciosa, pois haveria um tratamento impedindo a emergência de sintomas, além de uma ilusão de que a pessoa já estaria curada.

Mas por que trazer esse exemplo? O que isso tem a ver com a forma como devemos encarar a saúde mental?
É interessante pensarmos que a depressão, em muitos aspectos, pode ser comparada com a dor de cabeça no caso descrito acima. Ela não é a causa última, mas é consequência de algo que afeta a pessoa; não é uma doença em si, mas sintoma de algo mais profundo e não tão evidente. Para descobrir o que é esse “algo”, é necessária uma investigação mais profunda, que vá para além de apenas descrever o incômodo ou sofrimento que aflige a pessoa e de encontrar formas de aliviá-lo. Se um profissional faz um trabalho com foco apenas no alívio dos fatores que geram o incômodo imediato, é possível que se esteja deixando passar intocada a causa real daquele incômodo, que poderá se desenvolver e gerar outras consequências.
Essa investigação, no caso da saúde mental, se diferencia daquela investigação médica descrita anteriormente, porque a depressão não pode ser vista como consequência de um desequilíbrio orgânico ou, pelo menos, o desequilíbrio orgânico nunca é a causa última da depressão, mas apenas mais um sintoma que a acompanha. Quando se considera, por exemplo que a depressão é “falta de dopamina” ou algo do gênero, a causa do sofrimento está igualmente sendo ignorada e o foco do tratamento recai novamente sobre o alívio dos sintomas.

Mas, afinal, a depressão é sintoma de quê?
Diferentemente do que se pode dizer de grande parte das afecções físicas, as questões de saúde mental só podem ser compreendidas em sua totalidade se examinarmos a pessoa em suas relações sociais. É no âmbito das relações sociais que vamos encontrar as causas da depressão. Não à toa, em diferentes sociedades e em diferentes épocas, as formas de sofrimento psíquico são também diferentes. Existem quadros psicológicos que atingem massivamente as pessoas dentro de uma determinada sociedade, e esses quadros têm uma relação direta com a forma como as pessoas se relacionam nessa sociedade. Fatores como a moral dominante, as expectativas que se impõem sobre as pessoas, a estrutura da família, as relações de trabalho – são todos característicos de uma determinada sociedade e também indicadores das condições psicológicas que surgirão nos indivíduos dessa sociedade.
Portanto, tratar as pessoas afetadas pela depressão ou por qualquer outro tipo de sofrimento psíquico como se os problemas fossem individuais, orgânicos e como se tivessem que ser tratados individual e organicamente, como outra doença qualquer, é perder de vista o único âmbito no qual se poderia de fato atacar a raiz do problema: o âmbito social e das relações.

(É importante ressaltar que não estamos dizendo aqui que é um problema tratar os “sintomas”. Quando uma sinusite causa dores de cabeça, é razoável que, juntamente ao tratamento para a sinusite, se use algum tipo de analgésico para aliviar o sofrimento imediato do paciente, se necessário. Da mesma forma, algumas vezes a depressão é bastante severa e precisa ser tratada em si mesma, por meio de terapia e, em alguns casos, com medicações. O que é importante ter em mente é que esse tratamento, que visa fazer com que a pessoa fique aliviada de forma imediata, é um tratamento apenas de um sintoma, e não do problema em si. A investigação e a intervenção para o tratamento depressivo deve ser muito mais ampla do que aquela com foco no alívio dos sintomas.)

Mas muitos profissionais do campo da saúde mental ainda tratam seus pacientes de forma completamente apartada das questões sociais ou, quando consideram essas questões, elas são secundárias e não centrais para o tratamento. Isso acontece porque as estruturas sociais e seus ideais estão muito arraigados por todo lado, inclusive nos campos da Ciência e da Saúde. Em muitas teorias e pesquisas feitas sobre saúde mental, é impensável que profissionais atuem sobre o ambiente social ou sobre as relações de seus pacientes. Como esses âmbitos são colocados para fora das formulações psicológicas, qualquer distúrbio, sofrimento ou desvio da normalidade é atribuído ao indivíduo, como se estivesse nele a causa dos problemas de que sofre.
Esse tipo de perspectiva também é muito cara ao ideal produtivista. Por um lado, superou aquela velha ideia de que as questões mentais são irrelevantes e começou a compreender que elas afetam, sim, a produtividade do trabalhador. Por outro, somente vê a saúde mental como algo que daria condições às pessoas para trabalhar, e não como algo que deveria garantir uma qualidade de vida de forma mais ampla. Uma depressão pode ser causada, por exemplo, por relações tóxicas ou por episódios de violência no trabalho ou na família, mas o objetivo da saúde mental, nessa perspectiva, não seria tirar a pessoa dessas condições adoecedoras, mas fazê-la ficar bem dentro dessas condições. Muitas vezes os tratamentos mentais, tanto os medicamentosos quanto aqueles feitos por meio de terapia, visam apenas o alívio dos sintomas; fazem a pessoa “ficar bem”, mas sem intervir nas condições que a fizeram “ficar mal”. É como se se tratasse uma sinusite apenas com analgésicos: o problema fundamental permanece intacto, enquanto todos acreditam que a questão foi resolvida. No fim, desse ponto de vista que trata a depressão como uma doença como qualquer outra, o importante é que a pessoa esteja funcional, ou seja, que esteja apta a oferecer sua mão de obra, não importando se as condições que geram seu sofrimento estão sendo mudadas ou não. (Claro que, quando falamos em produtivismo, podemos encontrar tratamentos apenas de sintomas, sem atacar o real problema, também nas questões físicas, não apenas psíquicas, mas isso seria assunto para outro texto).

Mas há alternativas a essa visão produtivista que existe no campo da saúde mental. Há muitos profissionais que se esforçam para fugir das teorias mais tradicionais e individualizantes e trazer uma perspectiva que envolve a compreensão das relações e da sociedade no tratamento de seus pacientes. Nas terapias psicológicas, o alívio do sofrimento imediato deve ser apenas um dos objetivos a serem alcançados. É fundamental que os profissionais, juntamente com seus pacientes, investiguem e compreendam as relações e as questões sociais que geram sofrimento para que a intervenção também se faça sobre a realidade adoecedora, não apenas sobre a pessoa afetada por essa realidade.
Compreender quais são as pressões específicas que nossa sociedade faz sobre as pessoas, os lugares específicos para os quais as pessoas são empurradas socialmente e as violências específicas que sofrem por isso é o primeiro passo para compreender como a depressão se vincula a nossa estrutura social e, portanto, o primeiro passo para saber onde é que devemos intervir se quisermos combater o problema em suas raízes. A intervenção conjunta dos profissionais e dos pacientes sobre a realidade que gera sofrimento pode ser o primeiro passo para maior autonomia das pessoas para transformarem seus ambientes e para se constituírem cada vez mais sujeitos de suas vidas.

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Jo Camilo de Fernandes - Psicóloga e mestre em Psicologia Social

Comentários

  1. Pela primeira vez leio sobre a depressão como sendo um meio, não um fim, em que nossa mente mostra que algo está errado. Que entendimento oportuno! Obrigada!

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