Relações familiares e política: quando o amor justifica violências
Temos visto, nas redes sociais e
fora delas, muita gente falando sobre questões familiares. São principalmente
conflitos familiares relacionados com o período das eleições: brigas,
rompimento entre parentes, situações de violência e de isolamento. Mas são
esses conflitos todos decorrentes apenas das eleições e de diferenças
políticas? Ou o momento pelo qual o país passa apenas evidencia violências e
conflitos que já existiam dentro de nossas famílias?
As práticas e comportamentos de nossas famílias nos ensinam formas de agir, de pensar e de sentir desde muito cedo. Quando uma criança nasce dentro de uma instituição familiar, ela já começa a receber essas influências, a partir das quais muito de sua psique é constituída. Mas esse ambiente familiar, diferente do que diz a cultura dominante, não é livre de contradições. Desde que nascemos, por exemplo, as pessoas que nos alimentam, nos orientam e que nos protegem das ameaças do mundo exterior são as mesmas que brigam e exercem violências físicas e psicológicas. À família é reservado o direito de impor vontades e caprichos, principalmente às crianças ou membros mais novos, usando para isso diversos tipos de violência, desde jogos e abusos psicológicos até castigos físicos. A desconsideração pelas necessidades psicológicas, a imposição de padrões de comportamentos nocivos à saúde e a exposição das pessoas (principalmente crianças) a humilhações e constrangimentos é lugar comum na maioria das famílias; essas ações nem são vistas como violentas, e são apoiadas pela maior parte dos membros.
E qual a justificativa para isso tudo? Amor. Quem de nós nunca ouviu que alguma violência à qual nos submetem é exercida para o nosso próprio bem? Ou que os familiares (mais velhos) sabem mais, e por isso a imposição de suas vontades e caprichos seria o melhor para nós? Quem nunca passou pela situação de ter sua opinião ignorada ou suas necessidades consideradas menos importantes por aqueles que dizem amar e querer bem?
Desde pequenos, aprendemos que o amor é uma justificativa razoável para aceitar pequenas (ou grandes) violências no dia a dia. “Ele está gritando comigo, mas é porque quer me proteger”. “Ela me proíbe de ser quem eu gostaria de ser, mas é porque ela sabe que isso não é o melhor para mim”. “Eles me batem, mas é porque eu fiz algo de errado”.
É extremamente perturbador, mas não surpreendente, que a família e as relações que são criadas dentro dela nos ensinam a naturalizar e aceitar violências que sofreremos ao longo da vida adulta, em nome do amor. Um exemplo dessa situação que tem sido bastante discutido ultimamente são os relacionamentos conjugais abusivos, que seguem essa mesma lógica: uma pessoa se impõe a outra, praticando muitas pequenas violências cotidianas quase invisíveis (porque são naturalizadas), e eventualmente algumas violências maiores, que acabam também sendo relevadas em nome da construção de uma relação de amor.
E assim as violências vão sendo naturalizadas como corretas na nossa psique: nos submetemos a elas em algumas situações, as exercemos em outras, e achamos normal quando vemos algo do tipo acontecendo com familiares, amigos ou até com desconhecidos. Ser família é uma carta branca dada pela sociedade para o exercício de opressões.
Se nos sentimos mal com isso, ou se nos revoltamos contra algum tipo de violência e nos negamos a nos submeter, somos atacados pelo sentimento de culpa. Afinal, você está se voltando contra alguém “que só quer o seu bem”. “Você é um ingrato, que não sabe retribuir todo o carinho e cuidado que você recebe”. “Você não valoriza o amor que as pessoas te dão”. Qualquer tipo de atitude contra essa violência já tão naturalizada é visto pela maioria das pessoas como uma agressão. Se alguém não aceita se submeter, essa pessoa é colocada como uma pária, como alguém que não respeita e não compreende aquilo que chamam de amor.
Mas como essa situação se explicita agora, no momento das eleições?
Muitas pessoas têm frisado bastante, nesse momento, a questão da violência contra as pessoas LGBT, mas essa é apenas a ponta do iceberg, uma forma mais evidente e direta de violência familiar. Não é muito difícil compreender a violência que é um familiar apoiar um projeto de país em que você é marginalizado, agredido e assassinado, em que você tem menos direitos que as outras pessoas, em que o próprio estado faz de você um inimigo a ser combatido. Deveria parecer óbvio que há, nesse caso, uma relação que não tem nada a ver com cuidado, com proteção, com afeto. Mas isso tudo também é naturalizado, e quem vive essa opressão dentro da própria família é deslegitimado. Dizem que isso é um assunto “de política” (como se “a política” não tivesse nenhuma relação com o bem estar das pessoas ou com os ataques que sofrem), e que os laços de amor são mais importantes que "a política". Ou seja, se alguém defende um projeto de sociedade que te violenta, você deve apenas aceitar o amor e não se importar com isso.
O mesmo tem acontecido com muitas pessoas que fazem parte de grupos que são alvo de discursos de ódio. Não só na família, mas em diversos grupos sociais que, seguindo o mesmo modelo, se baseiam em um tipo de amor que aceita violências. “Não se deve desfazer amizades por conta de política” é algo que muitos ouvimos esses tempos. Nessa frase, os mesmos pressupostos estão presentes: ignoram que a política é algo que afeta diretamente a vida de algumas pessoas e usam o discurso do afeto para submeter essas pessoas a relações violentas.
Mas isso não acontece, obviamente, só com pessoas que são alvo de opressões sociais e de discursos de ódio. O simples fato de ter relações com pessoas que defendem a tortura, por exemplo, já é extremamente violento para algumas pessoas. E, da mesma forma, essa violência é tomada como algo menor, às vezes até como “frescura”. E ouvimos coisas como: “Nossa, você vai brigar com fulano só porque ele está defendendo isso?”. Acontece que não é frescura. É normal e saudável sentir-se violentado com comentários que incitam a violência contra seres humanos, ou seja, é normal e saudável sentir empatia por pessoas que sofrem opressões, e também sentir estranhamento em relação àquelas que defendem tais opressões. Usar o argumento do amor para submeter alguém a esse tipo de relação é violento, mesmo que muitas das pessoas envolvidas não reconheçam essa violência.
E essas relações são passíveis de transformação?
Algumas vezes as pessoas que ocupam posições sociais que permitem que ajam como opressoras, como as posições familiares que já descrevemos aqui, são suscetíveis ao diálogo e podem, a partir dele, compreender as violências que exercem e repensar suas atitudes. Mas muitas vezes a construção que se faz da família e do amor em nossa sociedade é tão naturalizada que as pessoas não conseguem pensar para além dela. Qualquer tipo de divergência em relação àquilo que vêem como algo tão natural é visto como um desvio, como uma afronta, ou como simples contrassenso, e não se propõem a tentar compreender. Quem rompe com essa ordem dada é que está errado, que está negando o amor familiar e que, portanto, deve “se corrigir” ou sentir culpa.
Nos casos em que o diálogo não é possível, ainda assim as pessoas que sofrem as violências podem se fortalecer e estabelecer um nível de relação que seja mais saudável para elas. Algumas vezes isso vai implicar distanciamentos e outras vezes até rompimentos de relações, e é importante que a pessoa que está se afastando compreenda bem a situação para evitar ao máximo entrar novamente no ciclo de sentir-se culpada e, por isso, voltar a se submeter às situações que a fazem mal.
É importante ressaltar também que isso não é o fim de todas as relações, nem a constatação de que toda forma de amor é violenta e nociva. Uma pessoa que está muito inserida em relações abusivas pode não compreender a possibilidade de estabelecer relações mais saudáveis, e alguém que sempre viu o amor sendo usado para justificar seu sofrimento pode enxergar poucas esperanças de construir novas relações afetivas de um tipo diferente. Mas mudar isso tudo é possível. É possível um processo de fortalecimento pessoal, por meio de fortalecer também relações mais saudáveis com outras pessoas, que permita o arrefecimento de sentimentos de culpa e afastamento dos ambientes mais nocivos. É possível cuidar da nossa saúde mental sem nos sentirmos eternamente presos a relações que nos subjugam. É possível construir relações baseadas no cuidado, no afeto e não na violência, e assim viver uma forma não opressora de amor.
Jo Camilo de Fernandes - Psicóloga e mestre em Psicologia Social
As práticas e comportamentos de nossas famílias nos ensinam formas de agir, de pensar e de sentir desde muito cedo. Quando uma criança nasce dentro de uma instituição familiar, ela já começa a receber essas influências, a partir das quais muito de sua psique é constituída. Mas esse ambiente familiar, diferente do que diz a cultura dominante, não é livre de contradições. Desde que nascemos, por exemplo, as pessoas que nos alimentam, nos orientam e que nos protegem das ameaças do mundo exterior são as mesmas que brigam e exercem violências físicas e psicológicas. À família é reservado o direito de impor vontades e caprichos, principalmente às crianças ou membros mais novos, usando para isso diversos tipos de violência, desde jogos e abusos psicológicos até castigos físicos. A desconsideração pelas necessidades psicológicas, a imposição de padrões de comportamentos nocivos à saúde e a exposição das pessoas (principalmente crianças) a humilhações e constrangimentos é lugar comum na maioria das famílias; essas ações nem são vistas como violentas, e são apoiadas pela maior parte dos membros.
E qual a justificativa para isso tudo? Amor. Quem de nós nunca ouviu que alguma violência à qual nos submetem é exercida para o nosso próprio bem? Ou que os familiares (mais velhos) sabem mais, e por isso a imposição de suas vontades e caprichos seria o melhor para nós? Quem nunca passou pela situação de ter sua opinião ignorada ou suas necessidades consideradas menos importantes por aqueles que dizem amar e querer bem?
Desde pequenos, aprendemos que o amor é uma justificativa razoável para aceitar pequenas (ou grandes) violências no dia a dia. “Ele está gritando comigo, mas é porque quer me proteger”. “Ela me proíbe de ser quem eu gostaria de ser, mas é porque ela sabe que isso não é o melhor para mim”. “Eles me batem, mas é porque eu fiz algo de errado”.
É extremamente perturbador, mas não surpreendente, que a família e as relações que são criadas dentro dela nos ensinam a naturalizar e aceitar violências que sofreremos ao longo da vida adulta, em nome do amor. Um exemplo dessa situação que tem sido bastante discutido ultimamente são os relacionamentos conjugais abusivos, que seguem essa mesma lógica: uma pessoa se impõe a outra, praticando muitas pequenas violências cotidianas quase invisíveis (porque são naturalizadas), e eventualmente algumas violências maiores, que acabam também sendo relevadas em nome da construção de uma relação de amor.
E assim as violências vão sendo naturalizadas como corretas na nossa psique: nos submetemos a elas em algumas situações, as exercemos em outras, e achamos normal quando vemos algo do tipo acontecendo com familiares, amigos ou até com desconhecidos. Ser família é uma carta branca dada pela sociedade para o exercício de opressões.
Se nos sentimos mal com isso, ou se nos revoltamos contra algum tipo de violência e nos negamos a nos submeter, somos atacados pelo sentimento de culpa. Afinal, você está se voltando contra alguém “que só quer o seu bem”. “Você é um ingrato, que não sabe retribuir todo o carinho e cuidado que você recebe”. “Você não valoriza o amor que as pessoas te dão”. Qualquer tipo de atitude contra essa violência já tão naturalizada é visto pela maioria das pessoas como uma agressão. Se alguém não aceita se submeter, essa pessoa é colocada como uma pária, como alguém que não respeita e não compreende aquilo que chamam de amor.
Mas como essa situação se explicita agora, no momento das eleições?
Muitas pessoas têm frisado bastante, nesse momento, a questão da violência contra as pessoas LGBT, mas essa é apenas a ponta do iceberg, uma forma mais evidente e direta de violência familiar. Não é muito difícil compreender a violência que é um familiar apoiar um projeto de país em que você é marginalizado, agredido e assassinado, em que você tem menos direitos que as outras pessoas, em que o próprio estado faz de você um inimigo a ser combatido. Deveria parecer óbvio que há, nesse caso, uma relação que não tem nada a ver com cuidado, com proteção, com afeto. Mas isso tudo também é naturalizado, e quem vive essa opressão dentro da própria família é deslegitimado. Dizem que isso é um assunto “de política” (como se “a política” não tivesse nenhuma relação com o bem estar das pessoas ou com os ataques que sofrem), e que os laços de amor são mais importantes que "a política". Ou seja, se alguém defende um projeto de sociedade que te violenta, você deve apenas aceitar o amor e não se importar com isso.
O mesmo tem acontecido com muitas pessoas que fazem parte de grupos que são alvo de discursos de ódio. Não só na família, mas em diversos grupos sociais que, seguindo o mesmo modelo, se baseiam em um tipo de amor que aceita violências. “Não se deve desfazer amizades por conta de política” é algo que muitos ouvimos esses tempos. Nessa frase, os mesmos pressupostos estão presentes: ignoram que a política é algo que afeta diretamente a vida de algumas pessoas e usam o discurso do afeto para submeter essas pessoas a relações violentas.
Mas isso não acontece, obviamente, só com pessoas que são alvo de opressões sociais e de discursos de ódio. O simples fato de ter relações com pessoas que defendem a tortura, por exemplo, já é extremamente violento para algumas pessoas. E, da mesma forma, essa violência é tomada como algo menor, às vezes até como “frescura”. E ouvimos coisas como: “Nossa, você vai brigar com fulano só porque ele está defendendo isso?”. Acontece que não é frescura. É normal e saudável sentir-se violentado com comentários que incitam a violência contra seres humanos, ou seja, é normal e saudável sentir empatia por pessoas que sofrem opressões, e também sentir estranhamento em relação àquelas que defendem tais opressões. Usar o argumento do amor para submeter alguém a esse tipo de relação é violento, mesmo que muitas das pessoas envolvidas não reconheçam essa violência.
E essas relações são passíveis de transformação?
Algumas vezes as pessoas que ocupam posições sociais que permitem que ajam como opressoras, como as posições familiares que já descrevemos aqui, são suscetíveis ao diálogo e podem, a partir dele, compreender as violências que exercem e repensar suas atitudes. Mas muitas vezes a construção que se faz da família e do amor em nossa sociedade é tão naturalizada que as pessoas não conseguem pensar para além dela. Qualquer tipo de divergência em relação àquilo que vêem como algo tão natural é visto como um desvio, como uma afronta, ou como simples contrassenso, e não se propõem a tentar compreender. Quem rompe com essa ordem dada é que está errado, que está negando o amor familiar e que, portanto, deve “se corrigir” ou sentir culpa.
Nos casos em que o diálogo não é possível, ainda assim as pessoas que sofrem as violências podem se fortalecer e estabelecer um nível de relação que seja mais saudável para elas. Algumas vezes isso vai implicar distanciamentos e outras vezes até rompimentos de relações, e é importante que a pessoa que está se afastando compreenda bem a situação para evitar ao máximo entrar novamente no ciclo de sentir-se culpada e, por isso, voltar a se submeter às situações que a fazem mal.
É importante ressaltar também que isso não é o fim de todas as relações, nem a constatação de que toda forma de amor é violenta e nociva. Uma pessoa que está muito inserida em relações abusivas pode não compreender a possibilidade de estabelecer relações mais saudáveis, e alguém que sempre viu o amor sendo usado para justificar seu sofrimento pode enxergar poucas esperanças de construir novas relações afetivas de um tipo diferente. Mas mudar isso tudo é possível. É possível um processo de fortalecimento pessoal, por meio de fortalecer também relações mais saudáveis com outras pessoas, que permita o arrefecimento de sentimentos de culpa e afastamento dos ambientes mais nocivos. É possível cuidar da nossa saúde mental sem nos sentirmos eternamente presos a relações que nos subjugam. É possível construir relações baseadas no cuidado, no afeto e não na violência, e assim viver uma forma não opressora de amor.
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Jo Camilo de Fernandes - Psicóloga e mestre em Psicologia Social
Muito bom! Sinto que deveria ter lido antes.
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